A CONSPIRAÇÃO DE 1640
No dia 12 de Outubro de 1640 juntaram-se em casa de D. Antão Vaz de Almada (ainda hoje conhecida por «Palácio da Independência», mau grado o uso, por vezes demasiado fantasista, que dela se tem feito) vários conjurados, entre os quais se contavam D. Miguel de Almeida, Jorge de MeIo, António Saldanha, Francisco de MeIo e Pedro de Mendonça. A esta conferência assistiu também o Dr. Pinto Ribeiro, convidado não só por ser homem de grande talento como por exercer as funções de agente dos negócios da Casa de Bragança.
Falaram sobre os males de que sofria o reino e insistiram na necessidade de lhes pôr termo com uma revolução, «queixando-se do duque de Bragança que era a causa de tanta ruína por não querer aceitar a coroa que lhe ofereciam, e com ela a vida e a liberdade de todos», escreveu D. Luís de Meneses, acrescentando ainda estas palavras, que atribuiu a João Pinto Ribeiro quando este tomou a defesa de D. João: «Pois se o remédio está no duque, aclamem-no mesmo sem o seu consentimento, pois, vendo-se metido no empenho, antes quererá ser rei em perspectiva do que vassalo suspeito.»
Todos concordaram e decidiram enviar a Vila Viçosa Pedro de Mendonça, a fim de comunicar a D. João - de facto único herdeiro legítimo dos reis de Portugal a resolução que haviam tomado. Ainda hesitante, embora tendo escutado com grande atenção as palavras do emissário, o duque prometeu dar-lhe resposta depois de consultar o seu secretário António Pais Viegas. Rebelo da Silva narra assim essa consulta: «Tendo ouvido o duque, Viegas calou-se por um instante e depois pediu licença para fazer uma pergunta:
- No caso de o reino se constituir em república, que partido seguiria Vossa Excelência, do país ou o dos castelhanos?
- Sejam quais forem os acontecimentos - respondeu o duque -, hei-de acostar-me ao que. seguir o comum do País.
- Então... - volveu o secretário -... está dada a resposta. Mais vale arriscar tudo para reinar do que arriscar ainda tudo para ficar vassalo. A ocasião é chegada e parece que Deus a trouxe. A maior dificuldade consistia em os outros proporem a empresa, pois seria pouco seguro se a ideia partisse directamente de Vila Viçosa. Os fidalgos estão prontos e só pedem rei. Dê-lho Vossa Excelência, e encomende o mais à Providência.»
Quis ainda D. João expor o assunto a sua esposa, D. Luísa de Gusmão, filha dos duques de Medina Sidónia, e portanto de origem espanhola.
A lenda - ou essa parte da História que em certos passos abre as portas à imaginação - atribui a essa senhora a seguinte frase, da qual se pode dizer que, «se não é verdade, é decerto bem imaginada»:
- Mais vale ser rainha uma hora que duquesa toda a vida!
Mas vejamos como o historiador Rebelo da Silva a descreve:
«A duquesa, que era dotada de entendimento tão claro e de ânimo tão varonil, como depois confirmaram largas experiências... julgou por mais acertado, ainda que a morte fosse consequência da coroa, morrer reinando do que viver servindo, e animou o duque dizendo-lhe que todos os vaticínios eram pela segurança da empresa, e que só a demora poderia ser prejudicial.»
Tendo obtido esta resposta, D. João mandou chamar Pedro de Mendonça e disse-lhe - segundo conta D. Luís de Meneses «que, antepondo a saúde da Pátria ao risco particular, se resolvia a aceitar a coroa para a fazer respeitada por todos os inimigos».
Os trabalhos da conspiração ultimaram-se na reunião do dia 28 de Novembro, tendo ficado definitivamente marcado, para a acção decisiva, o dia I de Dezembro. No entanto, em 30 de Novembro houve ainda novo encontro dos conjurados, em casa de D. Antão Vaz de Almada.
Conta Pinheiro Chagas:
«Ninguém hesitava; uns, no entanto, redigiam os seus testamentos, enquanto outros encomendavam missas aos religiosos. Nessa tarde, alguns populares mais influentes haviam afirmado aos nobres que Lisboa inteira responderia ao grito de liberdade... »
Quando os conjurados se separaram, a noite estava carregada e triste. Era a última noite de escravidão. As breves horas que ainda decorreriam para soar a liberdade seriam marcadas pela impaciência, mas todos os ânimos se conservavam firmes. Dentro em pouco - pelas nove horas da manhã de I de Dezembro - Portugal ficaria livre da dominação estrangeira... ou a fúria castelhana esmagaria os audaciosos.
Eram momentos de fé e de receio, de esperança e de dúvida...
E na verdade, durante essas curtas horas, o perigo de denúncia continuou a existir -já antes, Miguel de Vasconcelos fora avisado do plano da revolução e até do dia em que a acção seria desencadeada... mas o renegado, felizmente, não acreditou em tal possibilidade de aventura dos portugueses.
Pinheiro Chagas conta-nos um episódio curioso... que poderia ter tido trágicas consequências:
«Um dos conjurados morava em casa de um parente e amigo que não estava no segredo da conspiração. Sentindo pesar-lhe na consciência o facto de ocultar ao seu hospedeiro assunto de tanta importância, reveloulhe tudo quando já vinha próxima a madrugada de 1 de Dezembro.
A inquietação com que o amigo recebeu a inconfidência sobressaltou o indiscreto, que não pôde conciliar o sono quando tentou descansar algumas horas na sua cama. E essa insónia evitou as trágicas consequências que episódio poderia ter tido.
Pouco depois de se terem recolhido ouviu ruído das patas de um cavalo, diante da porta; correu à janela e viu que o amigo se dispunha a partir. Desconfiando da possibilidade quase segura de uma denúncia, precipitou-se para a rua, agarrou violentamente o hospedeiro e ameaçou matá-lo se ele resistisse. Na manhã seguinte levou-o consigo, prisioneiro, para o Terreiro do Paço.»
Mas outros episódios, de uma qualidade bem diferente, marcaram essa madrugada de 1 de Dezembro de 1640... tais como o de D. Filipa de Vilhena, cingindo a espada por suas próprias mãos a seus filhos Jerónimo de Ataíde e Francisco Coutinho... e o de D. Mariana de Lencastre abençoando António e Fernão Teles, os filhos que iam partir para a magnífica empresa...
Havia ficado assente e recomendado a todos os conjurados os mais rigorosos disfarce na chegada ao Terreiro do Paço... e assim, pouco antes das nove horas da manhã, os fidalgos começaram a aparecer como em passeio, com um ar perfeitamente natural.
Era um sábado, esse dia que ficaria para sempre registado na História - um frio mas luminoso sábado do Outono português. A pé, a cavalo ou em coches, os homens que iam restaurar Portugal iam chegando tranquilamente, e antes ainda das nove todos eles ocupavam os seus postos. Era tão completa a confiança no êxito da empresa que, tendo João Pinto Ribeiro encontrado um amigo que lhe perguntou aonde ia, lhe respondeu serenamente:
- Não se preocupe. Vamos ali abaixo, à sala real, e num instante tiramos um rei e pomos outro ...
Um velho provérbio latino diz que «a fortuna protege os audaciosos» (audaces fortuna juvat), e não muitas vezes terá tido tão perfeita significação ...
A MORTE DE MIGUEL DE VASCONCELOS
Citamos mais uma vez Pinheiro Chagas - e provavelmente voltaremos ainda a citá-lo. Embora escrevendo à maneira da sua época, aquele a quem Eça de Queirós chamava, gracejando, «o brigadeiro Chagas» foi um polígrafo de indiscutível relevo, que se ocupou dos mais variados assuntos e a quem é impossível ignorar no panorama literário do século XIX - a sua Morgadinha de Valjlor não esquecerá, por exemplo. No entanto (e esta opinião nada tem de pejorativa), nos seus trabalhos de História sente-se sempre, e com prazer, o «cronista» cuja fecunda imaginação, sem alterar a verdade dos factos, de larga maneira ameniza a possível secura de uma simples narrativa.
Com o devido respeito, pois, citamos Pinheiro Chagas:
«A aparência pacífica dos coches que iam chegando ao Terreiro do Paço não assustou os soldados da guarda, habituados como estavam à presença matutina, junto do palácio, dos cortesãos da duquesa. Prontos a agir, os conjurados esperavam com impaciência o soar da hora combinada.
Nove horas. Abrem-se quase ao mesmo tempo as portinholas dos coches, e os fidalgos descem; entretanto, Jorge de MeIo, Estêvão da Cunha, António de MeIo e Castro, o padre Nicolau da Maia e outros esperam ainda, dentro das carruagens, que venha do palácio o sinal de assaltarem a guarda castelhana. Os outros conjurados, a maioria, sobem rapidamente as escadas, entram na sala dos archeiros tudescos e, sem lhes darem tempo para suspeitar o que ia acontecer, desembainham as espadas e derrubam os cabides das alabardas. Fogem os archeiros, atónitos e desarmados, embora alguns tentem defender a entrada do corredor que conduzia aos quartos de Miguel de Vasconcelos e aos aposentos da duquesa de Mântua. No entanto, acabam também por fugir, atacados por Luís Godinho Benavente e mais três ou quatro fidalgos, deixando um morto e um ferido estendidos no chão.
Entretanto, D. Miguel de Almeida, exuberante de alegria, corre a uma varanda, abre-a a exclama, brandindo a sua espada: - Liberdade! Viva el-rei D. João IV!
O duque de Bragança é o nosso legítimo rei!
E as lágrimas de patriótica emoção corremlhe pelas barbas brancas agitadas pelo sopro do vento que vinha do rio.
Respondeu-lhe, da praça, um imenso brado de entusiasmo:
- Liberdade! Liberdade!
Decerto todos julgavam reconhecer, nesse heróico velho de oitenta anos, radiante de ardor juvenil, o símbolo de Portugal decrépito e alquebrado, de novo iluminado por um reflexo das suas grandezas passadas.»
Nesse momento, os conjurados que esperavam o sinal para intervir lançaram-se de armas em punho sobre a guarda castelhana, apanhada de surpresa. A resistência foi inútil, embora os atacantes fossem apenas um punhado de homens.
D. António Telo, que jurara ser o primeiro a ferir Miguel de Vasconcelos, viu a certa altura passar um íntimo do renegado, Miguel Mansos da Fonseca. Sem mais detença correu para a secretaria, logo seguido por Pedro de Mendonça, João Saldanha da Gama, João Coutinho, Sancho Dias, João de Sá de Meneses, camareiro-mor, os dois filhos de D. Filipa de Vilhena, Tristão da Cunha de Ataíde e outros...
Encontrando no caminho o corregedor Francisco Soares de Albergaria, bradaram: - Viva el-rei D. João IV!
-Viva el-rei D. Filipe! - retorquiu o corregedor.
Duas balas acabaram com ele, mas as detonações atraíram a atenção de António Correia, oficial-mor da Secretaria do Estado, o qual, surgindo espavorido, foi logo abatido pelo punhal de António Telo - pois era também odiado pela sua acção de renegado e traidor.
Não se enganara António Telo a respeito de Miguel Mansos, que fora de facto avisar Miguel de Vasconcelos.
O secretário de Estado estava ainda na cama. Conhecedor do perigo que corria, levantou-se mais do que depressa, vestiu-se sumariamente e, perdida toda a calma, correu a trancar a porta do quarto. Apavorava-o o rumor surdo que vinha dos corredores, e apoderou-se dele a certeza de que já não tinha qualquer possibilidade de salvação. A aproximação do tumulto representava para ele a perda de toda a esperança.
Num último gesto de defesa, agarrou numa arma carregada e, procurando à sua volta algum sítio onde pudesse esconder-se, foi agachar-se dentro de um armário, que, por ter prateleiras onde se acumulavam documentos, o forçava a uma posição deveras incómoda.
Mal havia fechado o armário quando a porta do quarto caiu, arrancada dos gonzos, e os conjurados entraram de roldão.
Não avistando ali Miguel de Vasconcelos, iam no entanto sair, na suposição de que ele se tivesse refugiado noutro lugar... quando o renegado fez um movimento involuntário dentro do seu esconderijo.
Com brados de raiva e de vingança, os conjurados dispararam as pistolas contra a porta do armário...
Miguel de Vasconcelos pagou assim, com a vida, a sua indigna acção de renegado. Duas balas atravessaram-lhe a garganta e já estava morto quando os conjurados agarraram no seu corpo e, através de uma das janelas abertas, o atiraram para o terreiro.
Em baixo, a multidão que já se havia acumulado, reconhecendo o cadáver do homem que fora o carrasco dos portugueses, lançou-se sobre o corpo, como alcateia de lobos sobre a presa.
Conta o historiador Rebelo da Silva:
«Nesta miséria e aviltamento acabou Miguel de Vasconcelos, que poucas horas antes era senhor quase absoluto do governo da monarquia; o seu castigo afrontoso excedeu o que a severidade de uma nação generosa - pode impor ao mais culpado; mas não foi superior aos delitos que lho mereceram.»
Era necessário, todavia, que os conjurados se ocupassem da duquesa de Mântua, vicerainha de Portugal... que provavelmente ainda pensava ser. A duquesa, mais corajosa do que o seu secretário de Estado - ou talvez confiada na sua condição feminina -, resolveu aparentar a maior serenidade, tanto mais facilmente quanto a atitude dos fidalgos portugueses que entraram na sala onde ela se encontrava nem por um momento se afastou da mais extrema cortesia.
Quando, porém, os ouviu dizer que Filipe IV de Espanha deixara de ser rei de Portugal, a sua cólera não pôde conter-se... e num furioso arrebatamento tentou falar ao povo, dirigindo-se para uma das janelas.
Impediu-a disso D. Carlos de Noronha, observando-lhe que, se insistisse em não reconhecer a mudança operada no reino, podia levar os conjurados a perderem-lhe o respeito.
- A mim?... - quase gritou Margarida de Áustria, num assomo de orgulho ofendido. – Como?
- Forçando Vossa Alteza, se não quiser utilizar essa porta, a sair por aquela janela!
Dominada, a duquesa encaminhou-se silenciosamente para a porta dos seus aposentos. "Aí, depois de rezar no seu oratório, completou os arranjos do vestuário e reapareceu, pondose à disposição dos conjurados.
Conduzida para o Mosteiro de Santos, durante o tempo que ali permaneceu viu-se sempre rodeada de todas as atenções...
Quarenta homens haviam bastado para dar primeiro e decisivo passo... mas a tarefa tinha apenas principiado e foram necessários vinte e oito anos de lutas para que ela ficasse concluída...
O texto destes 9 capítulos apresentados, são de Raul Correia, os quadros
de Carlos Alberto Santos e as ilustrações de Martine N. de Sousa. Editado em 1985
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